FÓRUM DE DEBATES EPISTEMOLÓGICO

O Fórum de debates sobre moda e epistemologia se tornou uma das atividades centrais do NIDEM no decorrer de seu trabalho, por ser uma oportunidade para cada pesquisador compartilhar com o grupo seus pressupostos de trabalho, assim como trabalhar para uma melhor compreensão do estudo acadêmico e científico da moda. Nessa seção apresentamos a introdução, escrita pela pesquisadora Gabriela, para um dos debates realizados no NIDEM. Essa introdução serve como síntese de muitas das questões levantadas no decorrer dos diversos encontros. As transcrições completas dos debates serão brevemente tornadas disponíveis para consulta no NIDEM.

FORUM DE DEBATES: Moda e Epistemologia

1. Introdução

O texto que o Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Moda (Nidem) apresenta a seguir é o resultado da constituição de um fórum de debates, composto por integrantes do Núcleo (1), que se mobilizou para discutir a moda de um ponto de vista teórico e enquanto campo de saber.

A fim de organizar as discussões, alguns membros do grupo enviavam suas contribuições previamente e esse conjunto de pequenos textos circulava ente os integrantes, funcionando como uma provocação inicial ao debate. Esta estratégia mostrou-se acertada porque as discussões puderam ser aprofundadas e retomadas ao longo do processo.

Apresentamos a seguir a sistematização do debate e das contribuições direcionadas ao Núcleo. Como ponto de partida, pode-se afirmar que ao longo do trabalho emergiram preocupações e concepções em torno da questão mais geral e fundante da Moda como campo de saber, preocupações que direcionaram o debate, como poderá ser verificado ao longo do texto. Ao mesmo tempo, o grupo pôde também perceber-se como um dos atores em atuação no campo a que se propôs estudar, o que, segundo nossa maneira de compreender a questão, tornou o debate ao mesmo tempo mais complexo e desafiador.

Como questão inicial, nos colocamos a seguinte indagação: considerando-se que tem havido um processo de acúmulo desigual e assimétrico de saberes acadêmicos em todo dessa temática - a Moda - , de um ponto de vista epistemológico, de que maneira pode ser percebida a construção da cientificidade desse campo?

Para dar seqüência a essa reflexão, procuramos explicitar algumas concepções em torno dos aspectos epistemológicos nela envolvidos. De maneira geral, e a fim de dar curso aos debates, ajuizamos como consenso a compreensão da epistemologia como sendo a reflexão em torno dos critérios que definem atributos de cientificidade a um determinado conjunto de proposições sistematizadas ao redor de um dado objeto.

Para Japiassu (2), por exemplo, a epistemologia constitui-se como uma "disciplina que se interessa menos em descrever os métodos, os resultados ou a linguagem 'da' ciência ou da 'razão' nas ciências, do que em elaborar uma reflexão crítica permitindo-nos descobrir e analisar os problemas tais como eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou desaparecem, na prática efetiva dos cientistas".

"Trata-se de uma disciplina permitindo-nos submeter a prática científica a uma reflexão que, diferentemente da filosofia clássica da ciência, aplica-se, não à ciência feita, acabada, verdadeira, de que deveríamos estabelecer as condições de possibilidade e de coerência, de que deveríamos fornecer todos os seus títulos de legitimidade, mas às ciências em vias de se fazerem, em seu desenvolvimento histórico, vale dizer, em sua processualidade."

Desde o começo, portanto, ficou claro ao grupo que a questão em torno da relação Moda e Epistemologia deveria ser tratada em sua dupla dimensão. De um lado como questão intelectual, em vista de suas claras injunções nessa área, principalmente no que diz respeito à análise da busca de racionalidade, de relações de causa efeito, enfim do esforço interpretativo contido nos saberes acadêmicos sobre a Moda, construídos ou em construção pelo próprio grupo, e sobre os quais nos debruçamos.

Por outro lado, tornou-se bastante evidente ao grupo que a questão não poderia ser resumida à sua dimensão meramente intelectual. Buscamos incorporar à discussão a dimensão social da produção do conhecimento, já tão largamente debatida (3). Nesse sentido, uma questão central passou a ser identificar e evidenciar os métodos e os critérios utilizados, inclusive pelo próprio grupo, e aceitos como científicos na pesquisa em moda.

Ao perseguir esta questão, pudemos aferir a consistência do debate que estamos propondo, ao mesmo tempo em que clareamos minimamente o caminho pelo qual nos enveredamos. Foi possível constatar também que analisar em profundidade a especificidade desse campo é uma tarefa que permanece em aberto dada a complexidade da proposta em si e do objeto a ser estudado.

2. Concepções em debate

O texto a seguir representa uma sistematização das discussões realizadas. Procuramos manter a vivacidade do debate, de modo a explicitar as diferentes concepções que orientam e definem convergências e dissonâncias presentes no grupo.

Entre as contribuições iniciais recebidas com o objetivo de desencadear o debate, a questão mais presente é o que poderíamos chamar de uma busca pelo enquadramento epistemológico de nosso objeto, enquadramento que se oferece a partir de diferentes perspectivas, de angulações distintas.

Por exemplo, em seu texto (4), Solange Wanjman propõe a busca de uma genealogia, um endereço nas ciências humanas, a partir do qual poderíamos identificar, rastrear e mapear ali as diferentes abordagens da moda, ao mesmo tempo em que estaríamos assinalando as raízes dessa discussão naquele âmbito.

Adilson Alves orientou sua intervenção a partir da recuperação de conceitos que buscam uma definição rigorosa do fenômeno Moda acrescida da tentativa de uma identificação precisa do objeto. Marko Monteiro e Maria Cláudia Bonadio propuseram uma outra direção ao debate, interrogando se seria possível construir um edifício conceitual dentro de uma perspectiva totalizante do objeto.

Como mediadora desse debate, gostaria de esclarecer alguns aspectos em relação ao texto que enviei e que diz respeito às preocupações do Marko e da Maria Cláudia. Quando se coloca a discussão em termos epistemológicos, com freqüência o debate nos remete a uma abordagem mais fechada e totalizante associada ao empirismo lógico e ao Círculo de Viena.

O empirismo lógico está, em suas origens, ligado a dois círculos culturais e filosóficos, o de Berlim e o de Viena. O círculo de Viena tornou-se o mais importante e, consequentemente, o mais famoso. Em sua origem, ele surgiu da associação de um grupo de cientistas e filósofos que, reunidos em torno de Moritz Shlick, entre 1926 e 1936, aprofundaram seus debates em torno de lógica, método científico e teoria do conhecimento.

O objetivo primordial do grupo era estabelecer nítidas fronteiras entre o modo de produzir teorias científicas e a suposta ilusão cognitiva gerada pelo especulativismo metafísico. As primeiras formulações de critérios de cientificidade almejam alcançar duplo objetivo. Por um lado, visam especificar que características expressivas básicas devem portar os enunciados que ambicionam apresentar-se como fatualmente significantes. Por outro, intentam promover - a partir do lugar teórico proclamado científico - o desmacaramento dos discursos que se arrogam o direito de ser cognições quando não passam de quimeras verbais resultantes ou da incapacidade investigar qual a especificidade desse campo que permita ser sistematizada e analisada de se enlaçarem a algum conteúdo empírico ou do resvalo para empregos logicamente patológicos das línguas naturais. (5)

Desse modo, o que o Círculo de Viena demarcou claramente foi a condição da ciência como portadora de um status epistemológico superior, a partir da ênfase nos processos racionais de sua construção e na possibilidade de verificação de seus enunciados, daí sua caracterização como empirismo lógico.

A questão da supremacia da ciência, da aceitação de sua superioridade intrínseca sobre outros saberes, em termos de sua racionalidade assentada em bases verificáveis, tem sido duramente golpeada ao longo do século XX, através de acirrados debates intelectuais e pela busca permanente de construção de outros olhares, bem como pelo acúmulo de novos conteúdos em torno das especificidades do conhecimento científico. Contudo, muito da percepção que atribui ao conhecimento científico essa condição de superioridade ainda permanece arraigada no senso comum e também na visão de um conjunto significativo de cientistas, sobretudo oriundos das Ciências Exatas e Naturais. (6)

Em geral, entre intelectuais e pesquisadores que vêm acompanhando os debates mais atualizados sobre os processos de produção do conhecimento científico, esta visão de superioridade da racionalidade científica já foi demolida. Isso não significa, porém, a derrubada da reflexão epistemólogica , posto que se trata de um instrumento e não de um fim em si mesmo.

Nesse sentido, é possível afirmar que existe um processo permanente de reconstrução das abordagens epistemológicas que procuram mapear os percursos através dos quais são conferidos atributos de cientificidade ao conhecimento dito científico. Trata-se em geral de abordagens mais complexas, mais diversificadas, porque introduzem a dimensão social, onde antes havia o predomínio dos aspectos cognitivos.

Notas:

(1) O Nidem foi constituído como um grupo de pesquisa interessado em produzir e discutir academicamente a Moda e recebe o apoio institucional da Universidade Paulista (UNIP), que o acolhe fisicamente, e da Fundação de Amparo a Pesquisa (FAPESP), que financia suas atividades de pesquisa. Em diferentes ocasiões, participaram dos debates os seguintes pesquisadores e integrantes do Núcleo: Maria Gabriela S.M.C. Marinho, como coordenadora do Forum, Solange Wajnman, coordenadora do Nidem, Marko Monteiro, Alexandre Bergamo, Maria Cláudia Bonadio, Adilson Alves e Patrícia Sant'ana.

(2) JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. R. J.: Imago, 1981, 188p. (Col. Logoteca) p. 96.

(3) Buscamos aqui o apoio, sobretudo, dos estudos de Bruno Latour, cujas principais obras disponíveis em português são:. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. trad. do inglês [Science in action: how to follow scientists and engineers through society] por Ivone C. Benedetti. rev. da trad. por Jesus de Paula Assis. S. P.: Ed. UNESP, 2000, 440p. ilus. (Col. Biblioteca básica); Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. trad. do francês [Nous n'avons jamais été modernes] por Carlos Irineu da Costa. R.J.: 34, 1994, 152p. (Col. Trans); Idem e WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. trad. do francês [La vie de laboratoire] por Angela Ramalho Vianna. R. J.: Relume Dumará, 1997, 312p. ilus.; SERRÈS, Michel. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. trad. do [francês ?] por Luiz Paulo Rouanet. rev. de Marcelo Perine. S. P.: Ed. Unimarco, 1999, 272p.

(4) O tratamento mais aprofundado destas diferentes perspectivas teóricas encontra-se sistematizado em artigos que acompanham este texto principal.

(5) Alberto Oliva, "Verificacionismo: critério de cientificidade ou crítica à ideologia? In: Epistemologia: a cientificidade em questão, Papirus, 1990, p. 35-36.

(6) Verificar, por exemplo, o debate nas páginas da revista argentina Interciencia, entre o epistemólogo Mario Bunge e a antropóloga Hebe Vessuri.